Se
existe um complexo de inferioridade respeitante às doenças de negro? Que se
sabe a respeito da tristeosa?
Presidente: Passemos à discussão do
último tema: «Se existe um complexo
de inferioridade respeitante às doenças de negro? Que se sabe a respeito da
tristeosa?»
Alguém
deseja discutir este texto? O problema da tristeosa já foi esclarecido na
primeira reunião.
Baltasar Lopes: Eu creio que o
assunto ficou esclarecido na última reunião. A não ser que se entenda esse
complexo pelo medo físico perante a malária.
Presidente: Penso que o Sr. Dr. Almerindo Lessa quer referir-se ao facto
de nós, os médicos cabo-verdianos, procuramos ocultar certas doenças das chamadas
tropicais. Isso não é verdade, Sr. Doutor. Pelo contrário, todos nós as temos
procurado. O que tem acontecido com frequência é a negação dessas doenças por
médicos metropolitanos recém-chegados à província, como no caso dos
expedicionários, que nelas só acreditaram, muitas vezes, depois de dolorosa
experiência pessoal. O que algumas vezes sucedeu é que a certos colegas
foi-lhes quase proibido pôr os diagnósticos certos de determinadas doenças.
Isso é de facto lamentável, não sei de quem é a culpa, mas isso já acabou.
Santa Rita Vieira: Eu queria
esclarecer que se impõe uma condição: é a confirmação laboratorial.
João Morais: Também quero esclarecer
que oficialmente nem sempre se pode escrever certo; ou porque tais doenças
ainda não estão sistematizadas; ou porque falta o contrôle laboratorial. Muitas vezes abusa-se do diagnóstico de
paludismo para classificar uma doença febril cuja causa não está esclarecida.
Santa Rita Vieira: Acontece então
que, como se tem que pôr um diagnóstico, se vai sobrecarregar outra rubrica.
Presidente: Mas não é para ocultar
as doenças de negro, que era o ponto posto à discussão pelo Sr. Dr. Almerindo
Lessa.
Teixeira de Sousa: Eu quero apenas
dizer uma palavra. Doenças de negro, porquê? Se são tropicais, não atingem só o
negro. Atingem os amarelos e até os brancos das regiões tropicais. Doenças
tropicais, sim. Agora doenças de negro, não.
Daniel Tavares: Quando eu era
estudante do Instituto de Medicina Tropical, o Prof. Silva Teles falou comigo, sabendo que era de Santo Antão,
porque, no Congresso de Higiene de Londres, os delegados ingleses haviam
chamado a atenção da delegação portuguesa chefiada por Ricardo Jorge, sobre o estado de abandono em que se
encontrava a lepra em Cabo Verde, e em especial em Santo Antão. Pelo que
pensaram mandar uma missão cadastrá-la, mas foi adiada sucessivamente, até que
veio para aqui o Dr. Santana, que
eu conhecia de Lisboa, do Hospital de Santa Marta e do Instituto de Medicina
Tropical. Mas, como não sabia andar a cavalo, e, portanto, não podia fazer o
cadastro dos leprosos daquela ilha, resolveu abandonar a lepra e estudar o
índice palustre de S. Vicente. Um dia disse-me: «Colega, há aqui qualquer
doença que se parece clinicamente com o paludismo, mas que não é paludismo. É
preciso identificar essa doença. Que será?» Respondi: «Não há paludismo aqui em
S. Vicente?» «Não, não há. Não encontrei um único anófeles e já tirei sangue a
dez crianças do morro e não verifiquei nenhum caso». «Há, indiscutivelmente»
disse-lhe eu. «Quando vim de Lisboa tinha o hábito de identificar com o
microscópio todos os doentes e encontrei principalmente o Vivax, mas também o Malariae
e até muitos casos de Praecox.
Presidente: Sim?
Daniel Tavares: Sim. Ele fez-me uma
careta, foi para Santiago e quando voltou teve a pouca sorte, ou a muita sorte
de chegar um dia depois de o barco ter partido. Ficou à espera do barco
seguinte. No outro dia encontrou-me a caminho do Hospital. «O colega disse-me
que aqui havia paludismo? Agradecia-lhe que me mandasse um caso ou me deixasse
ver umas lâminas, mesmo lá no consultório». Nesse mesmo dia mandei-lhe um
doente que morava no Monte Sossego e pouco depois o Dr. Santana voltava com o próprio microscópio para dizer:
«Colega nunca vi em parte nenhuma, nem mesmo em S. Tomé nem em Angola um caso
de infestação tão intensa como esta. Veja quantos anéis de Praecox, por todos os lados. Este homem não escapa. Trouxe apenas
para o colega ver. Imagine se eu tenho ido ontem!»
Mandei-lhe naqueles dias dezenas de
casos, todos positivos. «E não haverá casos de infecção de fungos da pele?» Em
grande quantidade, respondi. Têm o nome de xerbosa. E mandei-lhe novos casos.
De modo que se ele tem seguido um dia antes dizia que não havia paludismo em S.
Vicente.
Esteve aqui um outro médico que
soube – se é que soube – de alguém (dos americanos de retorno) tuberculoso e
logo escreveu no seu relatório que a emigração para a América era indesejável,
já que todos voltavam tuberculosos e introduziam a doença em Cabo Verde. E este
Dr. Santana cometeu a imprudência
de fixar esse facto, inteiramente falso, no seu relatório. Pelo contrário,
esses homens não só não vêm tuberculosos como auxiliam com os seus dólares a
luta contra a doença. De modo que muitas vezes os relatórios são muito
apressados. Diz o Dr. Almerindo Lessa que
dois meses são insuficientes para poder apreciar Cabo Verde. Bom! São, na
realidade. Pois há poucos dias ouvi o Dr. Júlio
Monteiro referir uma obra que corre por aí, publicada sobre Cabo Verde,
de um homem que nunca esteve aqui. Só de passagem umas horas…
Júlio Monteiro: A bordo de um barco.
Manuel Meira: Eu creio que o ponto
inicial posto pelo Dr. Almerindo Lessa foi
um pouco esquecido. Isto é: houve um desvio no decorrer destas conversas. Eu
não creio – tenho alguma experiência de Cabo Verde; já vim aqui várias vezes
desde 1946 – , eu não creio que haja na realidade qualquer complexo de
inferioridade referente às doenças de negro, isto é, aquele ponto que se refere
à ocultação de doenças propriamente de negro. Não existe patologia propriamente
africana. O Dr. Almerindo Lessa,
mesmo de começo, especificou bem o ponto. Pô-lo bem a claro e declarou que não
reconhecia uma patologia exclusivamente tropical, com a excepção feita, e muito
bem, da hipnose, da doença de sono. De forma que me parece que não há da parte
dos nossos colegas aqui residentes ou naturais de Cabo Verde qualquer complexo
para ocultar doenças do nativo. Porque essas doenças não existem; pelo menos
doenças que possam parecer vergonhosas. Fugindo já da designação específica da
expressão.
No decorrer desta Mesa houve
referências a várias doenças correntes em S. Vicente, por exemplo, o paludismo,
e ouvi uma referência do Dr. Daniel
Tavares sobre um assunto que eu, extemporaneamente1, peço
licença para tentar esclarecer, se é que o poderei fazer. Refiro-me àquela
alusão feita por V. Ex.ª sobre o mal esclarecido problema do paludismo em Santo
Antão.
Na realidade, a sua alusão foi
felicíssima, porque todos nós podemos ver, desde há muitos anos, que nas
estatísticas não aparece nenhuma rubrica a respeito do paludismo em Santo
Antão. Não aparecem casos diagnosticados nos últimos anos, embora as
publicações oficiais antigas refiram surtos epidémicos, por exemplo, na Ribeira
Grande. Ora eu conheço também um pouco de Santo Antão. Fiz lá uma missão que
durou três meses, sobretudo na parte norte da ilha, e fiquei convencido que ela
era um dos exemplos, bastante raros, de anofelismo sem sezonismo. Muito
interessante para nós. Quer dizer: por toda a parte se encontravam anófeles e
em nenhuma parte se encontravam doentes. Ora eu pude, mercê dos conhecimentos
actuais, levantar o véu, ou pelo menos, a ponta do véu, deste mistério.
Existe
em realidade em Santo Antão, (refiro-me a parte norte) anofelismo intensíssimo.
Simplesmente, o anófeles não é transmissor de malária. Trata-se de uma espécie
que, pelas suas condições de vida, pela sua biologia, não propaga a doença.
Primeiro, porque potencialmente não é capaz de a transmitir; em segundo lugar,
porque, pelos seus hábitos não pica o homem; não o pica pelo intensamente. É
capaz de o fazer, por exemplo, em cativeiro, mas tem uma preferência alimentar
notavelmente zoófila. Trata-se da espécie Pretoriensis,
que foi descoberta também posteriormente na Boa Vista e em Santiago e
finalmente aqui em São Vicente. É um anofelismo que nós permitimos que
sobreviva aqui, actualmente, em vários pontos. Em S. Nicolau existe uma
situação semelhante, apenas diferente porque de quando em quando surgem as tais
«carneiradas» de paludismo, mas onde intervém, quase com certeza, o A. Gambiae, que é o grande responsável
pela distribuição do paludismo no arquipélago. Isto são divagações, mas eu
entendi que devia prestar estes esclarecimentos. E já agora, com referência a
uma pergunta do Sr. Dr. Júlio Monteiro,
se o Sr. Dr. Almerindo Lessa teria
feito quaisquer estudos psicossomáticos (ele respondeu negativamente), eu
queria informá-los de que uma das missões realizadas pelo Instituo de Medicina
Tropical que trabalhou em S. Nicolau em 1954, chefiada pelo Sr. Dr. Lopes Barbosa, fez esses estudos e creio
que muito brevemente serão publicados nos anais do Instituto.
Presidente: Queria fazer uma
pergunta ao Sr. Dr. Daniel Tavares.
Há pouco ouvi-lhe dizer que tinha encontrado as três espécies de plasmódios: o Vivaz, o Malariae e o Praecox. Ora
eu e o Dr. Manuel Meira vimos
muitos milhares de lâminas e não encontrámos nenhuma com Malariae. Foi aqui mesmo em S. Vicente que o Sr. Doutor o
encontrou?
Daniel Tavares: Aqui mesmo em S.
Vicente.
Manuel Meira: O Malariae já foi encontrado em Cabo Verde e eu já o encontrei em S.
Nicolau. Nunca em S. Vicente, mas em S. Nicolau sim. Um único caso, é certo,
que foi confirmado pelo professor Cambournac.
Presidente: Parece-me que todos os
problemas foram focados. Agora não sei se o
Dr. Dr. Almerindo Lessa
quer dizer alguma coisa.
Almerindo Lessa: Meus senhores: como
era fatal, eu corri o risco; nem outra circunstância podia acontecer. É
possível que eu saia daqui, como temia, julgado mais ignorante do que realmente
eu penso que sou. Mas creio que cheguei onde pretendia. Provoquei uma
discussão, obriguei talvez os senhores a falarem mais do que aquilo que
quereriam. Disse-lhes, de entrada, quais eram as razões que me levavam a
propor-lhes estas pequenas questões e não outras. Tentei fazer um inquérito, já
não digo do tipo Gallup, mas um pequeno inquérito para uso pessoal, para que eu
não fosse informar tão mal de Cabo Verde como outros têm feito. Foi uma
autodefesa. De uma maneira geral, vejo que todos se interessaram pelos
problemas e todos procuraram afincadamente responder pela negativa à maior
parte das perguntas que eu tinha feito e que não passavam de perguntas. A maior
divergência foi, sem dúvida, a respeito da existência de uma civilização
cabo-verdiana, e que a meu ver, residiu sobretudo no diferente conteúdo que
cada um pôs dentro da palavra civilização. No entanto, eu concluo, pela
discussão estabelecida, que existe pelo menos uma tentativa de civilização
regional, que falta talvez compreender no seu sentido final; civilização no
sentido Ocidental, no sentido Africano ou, porventura, no sentido que hoje
damos à nossa civilização: euro-africana. A dificuldade está no impedimento
essencial de todos os problemas desta natureza, mas eu creio que fiquei a
perceber quais eram as próprias perplexidades de V. Ex.as.
É
claro que o mais debatido – não podia deixar de ser – tão forte e tão duro que
até um poeta me respondeu em prosa (!) foi o problema da indolência
cabo-verdiana. Não me espanta que tenham ficado sentidos. Do fundo da discussão
eu concluo que, à parte a existência ou existência de uma atitude ou de uma
não-atitude que se pode chamar indolência (aquela indolência que na verdade
registam todos os observadores que até hoje se debruçaram sobre os problemas de
Cabo Verde), existe um estado de frustração resultante da perda de fé
administrativa, e há, pelo menos, falta de espírito de colectividade.
Do problema da língua crioula já eu
esperava que a resposta fosse essa e no que às formas elementares de cultura da
terra ouvi mais uma vez aquilo que o Sr. Dr. Júlio
Monteiro já me tinha confessado.
No que respeita ao problema de
doenças de negro e do complexo de inferioridade que o seu aparecimento pode
levantar nos cabo-verdianos, o problema fora-me posto a mim, pessoalmente, por
uma alta personalidade médica. Limitei-me a repeti-lo neste inquérito.
Expliquei qual era o meu ponto de vista, referi qual era a minha posição e a
dificuldade que eu tenho em me servir dos dados publicados. Pus o problema em
relação às doenças dos negros e não dos amarelos, visto que tinha de
referenciar-me a uma percentagem maior ou menor de raiz antropológica, e que
seguramente não é, neste caso, a raiz amarela. Evidentemente que o problema é
geral e eu próprio comecei por dizer que não creio na existência isolada de doenças
tropicais.
Chegado ao fim desta que foi a nossa
segunda reunião, eu creio que posso tirar uma conclusão principal. É que vale a
pena sempre provocar para uma Mesa Redonda homens assim cheios de boa vontade
para discutir problemas comuns. Havia neste caso, um homem que estava em má
posição, na circunstância atrevida de vir discutir problemas que essencialmente
são de V. Ex.as. Era eu. Mas espero que não levem isso a mal. Eu
tenho por mim que respeitei os homens de Cabo Verde, sem deixar de respeitar-me
a mim próprio.
In
CABO VERDE – Boletim de Propaganda e
Informação, Nº 104 – Maio de 1958
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