No Lançamento de «Contra Mar e Vento» – Colectânea reeditada

sexta-feira, 23 de junho de 2017
Hoje voltamos a falar de Henrique Teixeira de Sousa, romancista, contista, activista cultural, médico, nutricionista, analista social, ensaísta, vulto de referência inquestionável na Literatura cabo-verdiana, e, sobretudo da sua prosa literária.

Henrique Teixeira de Sousa continua a ser, no entender de muitos de nós, que o lemos e o apreciamos, como   o escritor cabo-verdiano que pôde, pelo dom da vida – note-se, que me refiro à sua longevidade intelectualmente activa, que lhe permitiu com sabedoria e com intrínseca disposição, ditada por uma grande compreensão – percorrer e entender os movimentos e, ou, os momentos mais inovadores e mais transformadores da ficção e da poesia cabo-verdianas. Disso deixou testemunhos.

Saliente-se, para exemplo, o facto de ele ter presenciado o nascimento, em Março de 1936, da célebre revista Claridade na cidade do Mindelo. Testemunha privilegiada por se tratar de algo que foi, é, e continua a ser, talvez, o ponto mais alto da história literária cabo-verdiana do século XX. Era então Henrique Teixeira de Sousa aluno do antigo Liceu Infante D. Henrique. E sobre este facto conta o autor, em alguns dos seus textos, resultado da longa colaboração que deixou no Jornal «Terra Nova», a partir dos anos 80 até à sua morte, conta ele, entre outras, duas memórias deveras interessantes que no-lo situam ao tempo, jovem liceal, participante e interessado na vida cultural que se desenrolava na cidade do Mindelo e mais tarde, em Lisboa.

Ei-las, passo a citar: “ (...) foi no meu quinto ano, corresponde hoje ao nono ano de escolaridade que se deu o grande acontecimento do aparecimento da revista «Claridade». Foi precisamente o momento em que despertei para o amor às letras, e em que escrevi o meu primeiro Conto com o título em crioulo: «Chuba qu’é Nós Gobernador»(...) Fim de citação.
 O conto destinou-se a um concurso lançado na turma dele, pelo professor de Português e de Latim, Baltazar Lopes da Silva. O então aluno Henrique T. de Sousa ganhou o primeiro prémio. In: «Doutor Baltazar Lopes da Silva e o nosso relacionamento» Jornal Terra Nova, Julho/Agosto de 1889.

Outro episódio, interessante narrado, por Teixeira de Sousa, a propósito de «Claridade», foi o seguinte: No Verão de 1940, estando ele em Lisboa, no curso de medicina, num encontro com Baltazar Lopes da Silva este anuncia-lhe que ia ser brevemente, publicado o terceiro número da revista “Claridade” e que se esperava um artigo de Teixeira de Sousa, recordou o autor, então com 20 anos e, cito: “fiquei alvoroçado com a possibilidade de colaborar naquele órgão de imprensa.”  Preparou  – em poucas noites e nos intervalos diurnos que os estudos universitários lhe deixavam  –  o ensaio:  «A estrutura social da ilha do Fogo».

Só que, afinal o número 3 da revista, não foi dado a estampa nesse ano de 1940, mas apenas em 1947. E concluiu Teixeira de Sousa lamentando:
“(...) Não fora esse atraso, eu teria alcançado o título de claridoso, em 1940, isto é, apenas quatro anos após a fundação da revista” (Fim de citação). Este ensaio: A Estrutura social da ilha do Fogo, seria por ele reelaborado, melhor trabalhado e publicado em 1958, num dos números do incontornável «Boletim Cabo Verde», agora com o título «Sobrados, Lojas e Funcos».

De Lisboa ainda, Teixeira de Sousa, saúda o aparecimento do movimento «Certeza» 1941, através de um telegrama, e como resposta recebeu ele a notícia - dada por Manuel Ferreira - que, por unanimidade, ele fora aceite como membro do grupo «Certeza».

Gostaria de nesta oportunidade de vos dizer algo, muito rapidamente sobre a aprendizagem/formação/literária, neo-realista de Teixeira de Sousa e que no fundo o terá munido também ideologicamente de instrumentos e de tópicos do modernismo literário e de novos valores trazidos para a temática literária, com a II Grande Guerra Mundial - de que a escrita de Teixeira de Sousa adaptada aos problemas cabo-verdianos e com herança claridosa – é portadora e beneficiária. E é em Lisboa, a par da sua vida de estudante aplicado, de medicina, que Henrique Teixeira de Sousa participa e comunga de tertúlias e de actividades literárias, políticas e culturais, com escritores, poetas e pensadores portugueses. Isto é, com o que de mais moderno e revolucionário se vivia no meio intelectual de então, em Portugal, nos finais dos anos 30 e meados da década de 40;  e onde pontificavam grandes nomes do romance e da teorização literária neo-realista: Adolfo Casais Monteiro, Fernando Namora, José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Judite de Carvalho, Maria Archer, Manuel da Fonseca, Vergílio Ferreira, entre outros nomes sonantes do romance português neo-realista, da segunda metade do século XX.

Pois bem, em contacto com as ideias europeias do tempo, e sem abdicar da sua cultura islenha Teixeira de Sousa, abraça de certa forma os temas e o estilo trazidos pelo movimento literário neo-realista. Os seus escritos ilustram-nos bem: os contos e os romances atestam o pendor e o cuidado que ele põe no traçado do enredo e no agir das personagens, quando em conflito com a sociedade em que se inserem, que para umas, se revela bem adversa e para outras, bem favorável porque ela – a sociedade – é que as instrumentalizam e as comandam. Daí o leitor se aperceber do peso da referida corrente literária –neo-realista – no grande texto do autor.

Vale também dizer, que apesar de a escrita de Teixeira de Sousa ser beneficiária, em termos de conteúdo, de um dos mais importantes movimentos literários da segunda metade do século XX, ele não deixou de ser também um lúcido crítico daquilo que considerou ser os excessos desta escola literária, mesmo reconhecendo que foi o Neo-Realismo, que tantos e extraordinários romances de língua portuguesa enformou.

Ora bem, é nesse ambiente, acrescido pela bagagem cultural que levava das ilhas, fruto da sua observada, estudada e sentida cabo-verdianidade, que se completaram, se consubstanciaram e se fundamentaram o grande contista e o emblemático romancista nosso, Teixeira de Sousa, que continuamos a celebrar.

Continuando, já em Cabo Verde – e a partir de São Filipe, na ilha do Fogo, como clínico de boa fama, director do Hospital da cidade e da ilha que nas mãos do Dr. Teixeira de Sousa conheceu melhorias substantivas – o escritor  iniciou uma colaboração regular no «Boletim Cabo Verde» e quem se der ao gosto de consultar os números, de 1949 a 1964 e foram cerca de 200 números, há-de verificar e, encontrará com toda a certeza, em quase todos eles, artigos de Teixeira de Sousa, versando diversos temas num leque de assuntos numa abrangência e numa diversidade cultural que vão da medicina, passando pela literatura, às questões de índole antropológica, etnográfica, histórica local e regional; tendo como ponto de partida e pano de fundo, a sua ilha, a do Fogo. Também versou temas outros, relacionados com os problemas que se punham para o interesse e para a sobrevivência do Arquipélago. Mais, a escrita de Teixeira de Sousa esteve quase sempre também ligada à descoberta de novos valores que despontavam para a literatura cabo-verdiana; à crítica literária (de lembrar neste ponto, a excelente análise que fez do poema: «Caminho» de Jorge Barbosa, numa desmontagem assertiva sem nunca perder de vista, a beleza poética nele contida.).

Acresce-se, que foi também ele, num artigo no Boletim Cabo Verde, quem revelou as qualidades literárias de Maria Helena Spencer segundo ele, “escondida atrás das iniciais M.H.S. com que a jornalista praiense assinava as suas crónicas também publicadas no mesmo Boletim.

Viveu o surgimento dos novos poetas do «Suplemento Cultural» publicado no «Cabo Verde» em 1958. Foram também por ele, saudados.

Como vêm, Henrique Teixeira de Sousa, prestou e dedicou uma atenção real e interessada ao que de inovador em matéria literária ia surgindo nestas ilhas.

Nascia assim, no meio e num ambiente de intensa e interessante actividade literária – pois que se movimentavam e pontuavam os homens da Claridade – um dos maiores contistas do Arquipélago.

Estariam dessa forma, germinadas as sementes para, mais tarde, se abalançar à criação desta preciosa colectânea de contos: Contra Mar e Vento, a primeira obra que publicou (Prelo Editora, 1972). Mais tarde, editada pelas publicações Europa/América a 2.ª edição; e a 3.ª e penúltima edição pela mesma editora, em Maio de 1998. Esta edição, sendo a primeira edição nacional, será em termos sequenciais a 4.ª.

Entrando agora propriamente ao que aqui me traz – a apresentação de «Contra Mar e Vento» – apenas breves palavras, para não correr o risco de me repetir, uma vez que fui eu  quem também elaborou o posfácio e a resenha biográfica para o livro; livro que, diria, de quase imensurável valor literário, pela qualidade de escrita narrativa do seu autor.

A colectânea que temos em mão contém 10 contos, qual deles o mais delicioso e o mais tocante para o leitor, em termos da história contada? Qual deles o mais verossímil nos perfis das suas personagens e na descrição terrunho/ilhéu/foguense, na sua ambiência e cenários? Não o saberíamos afirmar.  E será bom para o leitor iniciante, descobrir na leitura dos contos, a qualidade da maravilhosa ficção que terá em mãos.

O Conto literário, conheceu definição mais segura e talvez mais definitiva no dealbar do século XX como sendo um episódio vivido, relatando um caso singular, onde o autor interveio ou de que teve conhecimento, e concebido literariamente como um romance curto ou prefiguração dum romance eventual. Exemplo: o conto «Dragão e Eu» e «Encontro». Aqui inseridos.

Mais tarde estes núcleos, estes nódulos, foram trasmudados, refeitos e desenvolvidos em cenas do romance «Ilhéu de Contenda».

 Continuando a colectânea, – «Contra mar e Vento», – os contos nela inseridos são todos e sem uma única excepção, delicadas e deliciosas narrativas, autênticas filigranas da arte ficcional crioula, em que o contista aliou à mestria na arte de contar, uma profunda sensibilidade, uma enorme humanidade num grande texto de uma rara beleza poética no delinear das suas personagens, no escutar e fazer entender o leitor as motivações que as levam a agir num determinado sentido – porque não poderia ser de outro modo – e que lhes condicionaram o estar e o ser em sociedade. Sociedade essa, a mais das vezes, bem hostil, em que a negação de amor ao próximo, a recusa do pão, são partes evidenciadas de um conjunto, por vezes violento, física e psicologicamente, de um desvio perverso do próprio sentido cristão da vida.

Das histórias narradas nesta fascinante colectânea que é Contra Mar e Vento distingo “Menos Um”, “Dragão e Eu”, “A Raiva”,  “Na Corte de el-rei D. Pedro” «Encontro» apenas e tão-somente para me cingir, numa opinião de leitora, aos textos que considero dos mais belos momentos saídos da pena do autor e os mais bem construídos e conseguidos no conto nacional. Contos com um farto suporte memorialista. Histórias reportadas à infância e à juventude dos seus fabulosos narradores e das não menos fabulosas personagens num redescobrir, e num registo discretamente autobiográfico do autor, da sua ilha natal e a idiossincrasia peculiar da sua gente de então.

Em termos cronológicos, o conto «A Raiva» deve ser o mais antigo, uma vez que o autor o  publicou em primeira-mão, em 1960 num dos números do Boletim Cabo Verde;  mais tarde – aprimorado e expurgada a nota explicativa da publicação/estreia, o incluiu na colectânea de Contos, agora reeditada. Este conto para o qual peço ao leitor uma leitura também simbólica e significativa,  regista aspectos chocantes que estiveram presentes na tristemente célebre emigração dos mais pobres de entre nós, para as ilhas de S. Tomé e Príncipe. A protagonista regressa à ilha do Fogo, da sua mal sucedida emigração, alquebrada e  doente. No Patim, localidade de origem e onde viviam - o que restava de - familiares, ela é literalmente “enxotada” para a cidade de S. Filipe, pois havia fome e ninguém tinha nada para dar a ninguém. Vai para o albergue. Limpa e trabalhadora, cai nas boas graças do funcionário da administração do Concelho, responsável pelo Albergue, mas em contrapartida, ganha o ódio das companheiras. É esta tensão que persiste e anima o enredo da narrativa, até ao desfecho trágico.

O livro abre com o conto «Menos Um» narrado na primeira pessoa. O narrador é uma criança obrigada a partir da casa paterna marcada pela crise de fome que amiúde se instalava nas ilhas. o protagonista está prestes a viajar para a vizinha ilha Brava, para a casa da madrinha, esta, menos minorada pela má sorte. Toda a narrativa, é percorrida por um tom dramático e contido, que reforçam a violência da situação de saudade e de alguma “orfandade,” pré vivida e expressa de forma dorida pela voz infantil e bem emocionada do protagonista.

Dos contos seguintes, particularizava também o conto «Dragão e Eu». Trata-se de uma história igualmente contada na primeira pessoa. O narrador ainda criança teve um cão, o “Dragão” que passou a ser o seu fiel amigo e companheiro de quase uma década. Juntos cresceram. Como diz o próprio narrador “...mais ele do que eu”.

Os leitores vão-se dando conta da cumplicidade criada, da passagem e das complexas mudanças do protagonista de criança/adolescente/jovem e finalmente homem feito. Por várias vezes ao longo do conto as duas vidas (a do protagonista e a do cão) se tocam e quase se confundem, no plano ontológico. Este conto que a princípio pode parecer destinado a crianças, torna-se a determinada altura, muito adulto, nas peripécias que vai narrando e à medida que o “Eu” (protagonista) entra na vida adulta também. Chegados ao fim da longa história das duas vidas, ficámos com a nítida impressão de que o autor quis fazer de «Dragão e Eu» uma novela, ou uma narrativa mais alargada, em relação aos de mais contos da colectânea. E isto, tanto no plano cronológico, como também, através dos vários episódios que «Dragão e Eu» contém.

 «Na Corte de el-rei D. Pedro» é percorrido por um simbolismo e por uma dramaticidade singulares, pois que o autor condensou no enredo, as causas da ascensão e da queda  da personagem principal de uma forma excepcionalmente sublime e que ilustra  muito claramente o lado errático da riqueza material conseguida pelo pai do narrador Vicente Cardoso e o seu posterior esbanjamento justificado em complexos desvios, que acabam no empobrecimento dos descendentes da outrora família rica de Jerónimo Cardoso, agora apenas relembrada na voz do pobre louco Raimundo, que todas as noites gritava do alto de S. Pedro, na cidade de S. Filipe, ser ele “el-rei D. Pedro”.

No conto «Encontro» iremos revisitar, um dos temas mais caros e recorrentes na ficção de Teixeira de Sousa, o posicionamento e os conflitos de classe vivenciados pelas personagens da história. O enredo gira à volta de Miguel, personagem protagonista, aspirante dos serviços aduaneiros de São Filipe, apaixonado e correspondido por Ilda. Ilda representa o típico social de filha-família do Fogo, sobretudo da cidade de São Filipe, que ia para Portugal, estudar em colégios e disso temos notícias reais, factuais, de moças, jovens mulheres do Fogo, que frequentaram em Lisboa, o Colégio «Bom Sucesso», o das «Doroteias» em Sintra, dentre outros, à época prestigiados estabelecimentos de educação feminina. A personagem Ilda voltou à ilha natal, agora exímia pianista e comunga com Miguel o gosto pela música clássica cujos sons ele os escuta ao largo, na rua, vindos do piano que ela toca.

Contudo, o namoro de Miguel e Ilda não é benquisto e nem bem visto pela família dela sobretudo. A chamada lei de “feijão-mistura” está primorosa e humoristicamente tratada pelo autor, e isso permite ao leitor retornar à sociedade foguense de antanho.

Prestes a terminar,  gostaria de reiterar que Henrique Teixeira de Sousa foi sem margens para dúvidas, uma das mais gradas e relevantes figuras do círculo literário nacional que se iniciou com o grande escol da Claridade.  As Letras cabo-verdianas e as de Língua portuguesa, garantiram com o seu estilo de contista e de romancista, com a sua arte de narrar, com a sua sabedoria na abordagem literária, com o seu modo de transpor para a ficção, as complexas vicissitudes com que o bem e o mal desafiam o Homem; garantiram, dizia eu, um  legado literário bem fundamentado, porque Teixeira de Sousa pôs ao serviço da literatura, uma longa, experimentada, rica e generosa actividade humana, – profissional e cultural, a par de uma bem conseguida criatividade ficcionista.

Teixeira de Sousa a par de Baltazar Lopes da Silva, de Manuel Lopes, de Gabriel Mariano e de Maria Helena Spencer – trouxe seiva e vigor ao conto, o que até então não tinha; e outorgou a este género literário uma certa autonomia e grandeza literárias dentro da Literatura cabo-verdiana.

Para finalizar gostaria de felicitar a Academia Cabo-verdiana de Letras pela oportunidade da reedição desta colectânea de primorosos contos e que irá contribuir para o acesso dos estudantes, da comunidade de leitores no geral, agora, sob formato de livro, como desejado, de uma das obras mais belas e bem conseguidas do nosso universo ficcionista.



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